As Ciências Humanas e a Prevenção Em Odontologia

CARLOS BOTAZZO


A prevenção em Odontologia conheceu um grande desenvolvimento no Brasil nos últimos 15 anos, tanto em termos técnicos quanto no que diz respeito a suas bases científicas. Creio que este desenvolvimento foi muito importante, e a tal ponto que, junto a outros fatores, impulsionou a Odontologia por uma vertente mais ou menos nova por aqui. Hoje, de fato a preocupação com a prevenção está presente no currículo universitário, nos congressos, nos cursos de aperfeiçoamento, e o clínico, no seu dia-a-dia, quer queira quer não, acaba por tocar em um ou outro tópico deste assunto. Mesmo quando o profissional não se "lembra", o paciente sempre perguntará alguma coisa.

Gostaria, a esse propósito, de dizer umas duas ou três coisas que raramente são ditas. Isto porque acredito que estamos indo muito bem pelo caminho das técnicas, mas estamos nos esquecendo de que lidamos com gente, pessoas, grupos sociais.

Este seria então o primeiro ponto. Quando digo que lidamos com gente, não estou querendo dizer "gente" do ponto de vista anátomo-físio-patológico. Isto é, uma coisa é lá a biologia e é muito óbvio que gente, concretamente falando, só existe na medida que existe também e simultaneamente como fato biológico. Mas outra coisa inteiramente distinta é considerar gente ou pessoa (ou paciente ou grupos) como fato social, o que significa compreender (de forma sistematizada e metódica) as infinitas e freqüentemente inquetantes possibilidades da nossa existência. A ciência de hoje acumula evidências que esclarecem melhor a nossa evolução e mesmo bio-antropólogos admitem que essa evolução foi muito mais social que biológica, a tal ponto que a extrema complexidade da nossa organização social (quando comparada com a dos primatas, por exemplo) seria fortemente direcionada e reguladora dos "influxos" e herança biológicos. Faz parte dessa complexidade nossa capacidade de simbolização. É através dela que podemos nos comunicar, e esta atividade é constituidora das nossas representações, valores, motivações, é ela que sustenta nossas opiniões e dá sentido e significado às coisas que fazemos.

Coloquemos agora o segundo ponto. A prática dos dentistas é penetrada por esta atividade de simbolização de modo muito intenso. Os que clinicam há algum tempo, com certeza, em alguma ocasião, tiveram que enfrentar a finalização desastrosa de um trabalho conduzido dentro da melhor técnica. E que um trabalho (tratamento, prótese, cirurgia, etc), nesse caso, não é o que aparenta ser, nem para o profissional nem para o paciente, porque ambos elaboram a idéia do tratamento e o simbolizam de modo distinto. Por isso, freqüentemente nossos pacientes não entendem o que falamos e nós não conseguimos compreender o paciente ou suas angústias. Minha experiência clínica me inclina em afirmar que as situações que se articulam com o que está sendo colocado são muito mais freqüentes na vida dos consultórios do que imaginamos.

São as ciências humanas que investigam os problemas próprios desse campo, e aqui vai o terceiro e último ponto destes comentários.

Se há uma atividade de simbolização (e há) que permite construir as representações que fazemos do mundo, os sistemas de valores e as motivações que animam nossa existência, podemos dizer que ela está presente quando pensamos prevenção em odontologia. Vou dar dois exemplos que ilustram bem esse ponto de vista, que são a questão do controle da placa e controle no consumo de açúcares, e através deles sugerir como as ciências humanas podem contribuir com esta discussão.

Os métodos preventivos em odontologia (eu melhor diria profiláticos, mas este é um outro assunto) repousam no tripé: resistência do hospedeiro, controle da microbiota e dieta não-cariogênica. São três fatores teoricamente descritos e que devem estar articulados para produzir doença. Entretanto, em termos práticos, acabam reduzidos a apenas dois, pois a dieta não-cariogênica diz respeito ao mesmo hospedeiro: a resistência e a dieta afetam um mesmo personagem. Indo por este caminho, resulta que a tríade se transforma numa unipolaridade, pois ao pretendermos controlar a microbiota, entra em cena outra vez o hospedeiro: sem dúvida, a microbiota é também dele. Assim, temos que resistência, microbiota e dieta se localizam em um único ser, e a ele se reduzem, pois é nele que se hão de realizar. Nós elaboramos a idéia de dieta, e então a representamos; os dentistas pensam esta questão de modo firme e positivo. Como será que os pacientes realizam esta operação de representar? Terá o mesmo sentido e significado? Como seriam as práticas de alimentação entre nós? Seria possível praticar uma alimentação racional e científica? Por que as pessoas cuidam adequadamente ( e freqüentemente com extremo zelo) de certas partes do corpo e são "descuidadas" com outras?

Creio que a essas interrogações não podem ser oferecidas respostas fáceis nem imediatas. O rigor técnico-científico com que guiamos nossa atuação profissional é o mesmo com que devemos responder a essas questões. Não vamos imaginar que não exista ciência, quando discutimos seres humanos como seres simbólicos. Isto só nos conduziria a graves equívocos. Tanto o mundo "material" (no sentido de mundo físico-natural) quanto o "mundo das representações" são realidades que a ciência interroga e sobre elas constrói seu discurso. Sem dúvida que a Odontologia se enriqueceria com esta aproximação.
 


CARLOS BOTAZZO - especialista em Saúde Pública e pós-graduando em Saúde Coletiva na UNICAMP