DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DA LESÃO DE SUPERFÍCIE
OCLUSAL
Marisa Maltz
A superfície oclusal é a superfície mais susceptível ao processo da doença cárie. Essa susceptibilidade tem sido relacionada com a presença de sulcos e fissuras profundas. A cerda de uma escova e a ponta da sonda exploradora tem diâmetro maior que o da fissura. Acreditava-se que esta área, inacessível à limpeza, ou seja, à remoção de microorganismos, iria obrigatoriamente cariar. Afirmativas como "todo defeito de esmalte é a lesão de cárie de amanhã" (Hyatt 1933) eram consideradas verdadeiras. A superfície oclusal era entendida como um "defeito do esmalte".
Baseados na crença de que "99% das superfícies oclusais desenvolveriam processo carioso" pela impossibilidade de limpeza dessas superfícies, foram desenvolvidas várias terapias com finalidade de eliminar ou obliterar os sulcos e fissuras. Em 1906, Black propõe a extensão preventiva, na qual, frente a um ponto de cárie na superfície oclusal, estendia-se a restauração a toda a superfície para "prevenir que a doença se instalasse novamente nessa superfície". Nas décadas de 20 e 30 desenvolveu-se a odontomia profilática, na qual tecido hígido era removido com a finalidade de transformar as fissuras em sulcos acessíveis a limpeza pela escova dental. Outro tratamento preconizado eram as restaurações preventivas nas quais superfícies sem cárie eram res-tauradas. O desenvolvimento do selante segue a mesma filosofia de que a única possibilidade de prevenir a instalação da lesão de cárie na superfície oclusal é a eliminação dos sulcos e das fissuras. O grande avanço foi a possibilidade de obliteração dos sulcos e fissuras sem a remoção de tecido hígido. Portanto, o uso indiscriminado do selante é uma versão moderna desse conceito clássico da necessidade de obliterar sulcos e fissuras para impedir o desenvolvimento de lesão nessa superfície. A prevalência da cárie vem diminuindo devido ao controle dos fatores relacionados com esta doença. É cada vez, economicamente, menos justificável selar indiscriminadamente todos os dentes, pois vários jamais vão cariar.
É necessário um entendimento do proces-so patológico da cárie dentária para quebrar alguns paradigmas referentes ao diagnós-tico e tratamento das superfícies oclusais.
Dois aspectos são importantes para o entendimento da possibilidade de controle da cárie na superfície oclusal: a viabilidade das bactérias no fundo da fissura e o local onde a lesão inicia.
Thylstrup e colaboradores estudaram o desenvolvimento de lesões de cárie em dentes extraídos com diferentes graus de desgaste. A observação mais importante foi a de que o desgaste funcional da superfície oclusal era capaz de prevenir o desenvolvimento de cárie independentemente da profundidade da fissura estreita remanescente. Essas superfícies apresentavam pouca placa, o desgaste oclusal causava distúrbio e remoção de acúmulos microbianos. As bactérias encontradas no fundo das fissuras não eram viáveis, constituindo-se muitas vezes em uma placa calcificada. Dentes com menor grau de desgaste oclusal apresentaram maior acúmulo de placa na superfície oclusal e diferentes graus de atividade de cárie. Constataram relação entre a macromorfologia, acúmulo de placa e cárie. Foi somente observada destruição visível relacionada com a espessura dos acúmulos de placa. Estudos histológicos demonstraram que a lesão de cárie nas fissuras estreitas iniciam na entrada da fissura. As lesões parecem iniciar por destruição localizada, e os sulcos e fissuras adjacentes não apresentam ou apresentam modestos sinais de desmine-ralização. Essas observações têm importância clínica à medida que indicam a possibilidade do controle de cárie na superfície oclusal como em qualquer outra superfície dentária. As afirmativas de que as superfícies oclusais iriam cariar devido à impossibilidade de controle mecânico dos acúmulos microbianos no fundo das fissuras não são corretas. As bactérias no fundo das fissuras não são viáveis e as lesões de cárie desenvolvem-se nas paredes laterais da entrada da fissura, local de acesso à remoção de placa e ação do flúor.
Considerações sobre diagnóstico e trata-mento da doença cárie - O tratamento da doença cárie durante muitos séculos foi a remoção da peça dentária. Com o surgimento de novos métodos de corte e materiais restauradores no século XIX, entramos na era restauradora. O tratamento da cárie passou a ser restauração. Sendo esse o tratamento, o diagnóstico se restringia à identificação da lesão. A cárie não era tratada como uma doença infecciosa passível de controle. Com o desenvolvimento do co-nhecimento científico do processo da doença cárie temos condições hoje de impedir e controlar seu desenvolvimento. O diagnóstico da lesão jamais deve ser realizado isoladamente da atividade de doença do indivíduo. A seguir, abordaremos somente questões referentes ao diagnóstico e tratamento de lesões de cárie oclusal. Não é objetivo deste artigo discutir diagnóstico e tratamento da doença cárie. Entretanto, temos que ter presente que é a avaliação da atividade de doença que em última instância determina o tipo de tratamento do paciente (controle do processo da doença e restaurador).
Diagnóstico da lesão de cárie em superfície oclusal - Devido à sua configuração anatômica, o diagnóstico da presença ou não de lesão nesta superfície é bastante proble-mático. Diferentes métodos de diagnóstico têm sido preconizados: exame visual com e sem o uso de sonda exploradora, radiografia bite-wing, transiluminação com fibra ótica (FOTI), medida de resistência elétrica (porque se acredita ser o esmalte um bom isola-dor elétrico, lesões de cárie que atingem a dentina poderiam ser detectadas através da medição da corrente elétrica), xeroradiografia e radiografia computadorizada.
Durante décadas, o veredicto sobre a decisão de considerar uma superfície oclusal cariada ou não foi baseado no fato de sonda exploradora prender ou não nesta superfície. Em um trabalho recente, Penning e colaboradores (Carie Res. 26: 445-9, 1992) cons-tataram que somente 24% das lesões de cárie eram detectadas através de sondagem (baixa sensibilidade), mas que raramente (12%) prendiam em superfícies hígidas. A sondagem é, portanto, não confiável para diagnosticar lesões em superfície oclusal. Existem outras desvantagens no uso de sonda, como a transferência de microorganismos de uma superfície para outra e, mais importante, a possibilidade de danificar a integridade da superfície desmineralizada do esmalte, podendo, desta maneira, favorecer o desenvolvimento da lesão. Podemos concluir que a sondagem não aumenta a fidelidade do diagnóstico e causa iatrogenia.
Tem sido sugerido que, devido ao grande uso do flúor, o diagnóstico da lesão de cárie em superfície oclusal tem ficado mais difícil. A alta capacidade remineralizante do flúor tem mascarado o desenvolvimento da lesão. Observa-se muitas vezes o esmalte intacto e um amplo comprometimento da dentina. A radiografia bite-wing é de grande auxílio no diagnóstico de lesões de dentina.
Vários estudos têm sido realizados analisando os diferentes métodos de diagnóstico com resultados bastante conflitantes. O exame visual apresenta uma boa especificidade (a maioria dos casos detectados são realmente lesões de cárie), entretanto tem uma baixa sensibilidade (não diagnostica muitas lesões). Já a radiografia, adicionada ao exame visual, aumenta a sensibilidade do método. Tanto o FOTI como a medida de resis-tência elétrica são métodos promissores, entretanto existem poucos estudos ava-liando sua efetividade, devendo ainda ser empregados com cautela.
Tratamento - A lesão de cárie inicial na superfície dentária aparece como uma man-cha branca e pode ser inativada como qualquer mancha branca de superfície livre. Carvalho e colaboradores (J Dent Res 68: 773-9, 1989) observaram a presença de manchas brancas em molares em fase de erupção devido ao difícil acesso à higienização dessa superfície. Quando os dentes entram em oclusão, a quantidade de placa observada sobre esta superfície é menor tanto pelo desgaste funcional como pela facilidade de acesso à limpeza. Na maioria das vezes as lesões de cárie inicial inativam quando o dente entra em oclusão.
A possibilidade de controle de lesões de cárie, inclusive nas superfícies oclusais, é uma realidade. Não se justifica a obliteração de sulcos e fissuras de todas as superfícies oclusais, o que constitui um sobre-trata-mento. Carvalho e colaboradores (Community Dent Oral Epidemiol 20:187-92, 1992) compararam um tratamento convencional com ênfase no selamento de superfícies oclusais com um tratamento baseado no controle do processo da doença. Os resultados demonstraram que o tratamento convencional, mesmo selando um grande número de dentes, ocasionou um maior número de dentes com experiência de cárie e uma maior necessidade de reconsultas do que o tratamento baseado no controle da doença.
A inativação de lesões de cárie em dentina é uma realidade nas lesões de superfície lisas. A lesão de cárie em esmalte, devido ao alto conteúdo mineral nesse tecido, apresenta uma invasão bacteriana bastante res-trita. Na lesão em dentina, devido à presença de canalículos dentinários, observamos a presença de microorganismos. Vários trabalhos clínicos demonstram a possibilidade de inativação de lesões que já atingiram a dentina. Acredita-se que os microorganismos no interior do tecido dentinário se tornam inviáveis, sendo importante a presença de uma placa cariogênica sobre a lesão para o desenvolvimento da lesão. Em trabalho recente realizado por Maltz e colaboradores (Anais SBPqO, 1994) em crianças de 6 a 8 anos, constatou-se a possibilidade de inativação de lesões de cárie em dentina na superfície oclusal, desde que não houvesse presença de esmalte socavado que impossibilitasse a remoção de acúmulos de microorganismos.
O diagnóstico e tratamento de lesões de cárie oclusal
estão passando por uma mudança de paradigma. Temos conhecimento
científico que possibilitam o controle do processo da doença
cárie. Frente à dúvida no diagnóstico de lesão,
o preconizado antigamente era "abrir o dente". Tal procedimento causava
a remoção desnecessária de tecido hígido. Hoje
a conduta é manter o paciente sob controle, nunca instituindo
a
priori um tratamento invasivo irreversível.
MARIZA MALTZ é Professora Titular do Departamento de Odontologia Preventiva e Social da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.