Willian Bowen, diretor do Departamento de Pesquisas Odontológicas da Universidade de Rochester-EUA, esteve no Brasil no mês de julho para a Jornada Internacional de Sorocaba. Além de participar do Simpósio "Saúde Bucal", Bowen ministrou um curso, que foi especialmente resumido para o Jornal da ABOPREV, por Marcia Mayer.
Importância da Película Adquirida - Formação de Placa
A película adquirida na superfície do esmalte, quando
observada em micros-copia eletrônica de varredura apresenta micelas
ou glóbulos, evidenciando não ser constituída por
material homogêneo. A presença destas micelas resulta em um
aumento na área superficial do dente. Atualmente, sabe-se que a
película é constituída por componentes salivares como
as proteínas acídicas ricas em prolina, estaterina, histatinas
e cistatinas (agentes antimicrobianos), amilase, anticorpo IgA e IgG, lipoproteínas,
mucinas 1 e 2, e substâncias de origem bacteriana como glicosil transferase
(GTF), frutosil transferase (FTF) e ácido lipoteicóico.
Na constituição da placa bacteriana observa-se
que os glucanos, sintetizados a partir da sacarose, podem chegar a 40%
do peso seco da placa, influenciando as reações que ocorrem
na mesma, não só devido ao seu volu-me, mas também
interferindo nas superfícies que as bactérias vão
aderir. S. mutans, quando cultivado em meio contendo sacarose, produz o
mesmo tipo de glucano presente na placa dental. No entanto esta bactéria
constitui apenas 1 a 2% da microbiota total. Como se poderia explicar,
então, a quantidade de glucano na placa, com uma quantidade tão
pequena da bactéria produtora? Possivelmente outros organismos poderiam
produzir o polímero. Outra explicação, mais provável,
seria a de que S. mutans produziria grandes quantidades de GTF, a enzima
produtora de glucano, e esta enzima poderia se ligar à superfície
do dente ou de outros microrganismos, tornado-os produtores de glucano.
A saliva total tem a capacidade de formar glucanos ou frutanos,
mas a saliva colhida diretamente dos ductos das glândulas não.
Quando se adiciona pó de hidroxiapatita (HA) à saliva total,
ocorre a adsorção de glicosil transferase à HA, ocorrendo
inclusive uma concentração destas enzimas na superfície
2 a 3 vezes maior que na saliva. É importante notar que as enzimas
apresentam comportamentos diferentes quando em solução ou
quando adsorvidas, e pelas características da cavidade oral, os
estudos com enzimas devem ser feitos não em solução,
mas com enzimas adsorvidas às superfícies. A atividade da
glicosil transferase em solução é altamente inibida
quando o pH atinge níveis menores que 4,5. No entanto a mesma enzima
adsorvida a HA não é pH dependente. Além disso, a
velocidade de produção de glucanos é 100 a 200 vezes
maior com a enzima adsorvida do que com a enzima em solução.
As enzimas, uma vez adsorvidas às superfícies, mudam de forma,
aumentando a sua atividade. Este fato explica porque, em um curto espaço
de tempo após a limpeza dos dentes, com o consumo de sacarose, pode-se
observar a presença de um material seme-lhante à placa dental,
mas sem a presença de bactérias. Na boca não existe
hidroxiapatita coberta apenas por saliva, mas o que se observa é
a superfície do dente recoberta por glucano. "As bactérias
preparam a própria cama antes de se deitarem". Assim, temos a presença
de produtos bacterianos na película influenciando o tipo de colonização
da placa.
O glucano formado na placa pode ter principalmente ligações
Alfa 1-6 (mais simples), ou ter ligações predominantemente
Alfa 1-3 (mais complexo). O glucano Alfa 1-3 é o principal glucano
presente na placa, mas não é o único. O principal
mecanismo de aderência de S. mutans se dá através deste
polissacarídeo. Os glucanos têm múltiplas ati-vidades
na placa: limitam a difusão de substâncias tanto de dentro
para fora da placa, como de fora para dentro; aumentam a aderência
de bactérias; protegem os microrganismos contra agentes físicos,
como dessecação, ou químicos, como antibióticos
e antis-sépticos; e sevem como uma fonte de reserva de energia nos
períodos de escassez de substrato.
As substâncias neutras, como o açúcar, se
difundem rapidamente na placa mas as substâncias com carga, como
os ácidos, não. Esta limitação da difusão,
promovida pelos glucanos, favorece a permanência de ácidos
em contato com a superfície dental. Após a ingestão
de um carboidrato fermentável ocor-re queda de pH da placa. Algumas
bactérias tem mecanismos para se proteger da alta concentração
de ácidos presentes neste momento. Um destes meca-nismos é
o bombeamento de ácidos para fora do citoplasma usando a ATPase.
Esta enzima tem um pH ótimo variável conforme o microrganismo,
sendo que naqueles implicados na cárie, como S. mutans e lactobacilos,
o pH ótimo para ATPase é mais baixo que em outras espécies
como S. sanguis e A. viscosus. A ATPase é também
extremamente sensível à presença de flúor,
e por isso a presença de flúor leva ao aparecimento de uma
microbiota na placa mais sensível às quedas de pH. O segundo
mecanismo, utilizado por algumas bactérias, é a produção
de amônia e uréia a partir da metabolização
da arginina, levando a um aumento de pH. Além da Veillonella, que
utiliza o ácido lático, alguns organismos, como Peptostreptococcus,
também diminuem a concentração de ácidos na
placa atra-vés da utilização de íons H+ e prolina
formando delta-aminovalerato, um aminoácido encontrado no fluido
da placa.
Alguns dos agentes mais efetivos são capazes de inibir
a atividade da glicosil transferase. Este mecanismo é interessante,
e deve ser explorado, já que não se justifica o uso de agentes
bactericidas na boca, exceto se houver uma infecção específica.
O uso de agentes de amplo espectro se assemelha ao uso de um martelo para
consertar um relógio! Estudos com GTF em solução demonstram
que muitas substâncias como as Bi biguanidas, os derivados quaternários
de amônia, aminas alifáticas e compostos aniônicos inibem
a atividade da enzima. O fluoreto de sódio não afeta a atividade
da enzima, mas quando o organismo é cultivado com o agente, a produção
de GTF é alterada. Existem diferenças na capacidade de agentes
químicos provocarem inibição da atividade de GTF adsorvida
à HA ou em solução. Os ácidos olenóico
e ursólico são mais potentes na inibição da
enzima em solução. Delmopinol, um isoaminoálcool anfotérico,
em concentração de 6,5 ou 13 mM, não tem qualquer
atividade sobre a GTF em solução, mas promove mais de 50%
de inibição da enzima adsorvida.
Dieta
O papel do açúcar na etiologia da cárie foi
bem evidenciado por estudos em animais e em humanos, e todos enfatizam
a importância do açúcar entre as refeições.
Os estudos de Muleman, em Zurich, utilizando dispositivos protéticos
com um eletrodo de pH, onde a placa foi deixada acumular, demonstra-ram
que a ingestão freqüente de carboidratos leva a sucessivas
quedas de pH abaixo do nível considerado crítico para o esmalte.
Esta técnica foi utilizada para determinar os alimentos "seguros
para os dentes", onde todo alimento que não leve o pH a níveis
iguais ou menores que 5.5 é considerado seguro. Mas será
que há mais cariogeniciade em um alimento ingerido 1 vez ao dia
que leve o pH a 5.7 do que em um alimento que leve o pH a 5,8 ingerido
5 vezes ao dia?
Para se saber a cariogenicidade de um determinado alimento, são
realizados experimentos em ratos, utilizando-se um alimentador programável.
Nestes estudos são controlados não só o tipo de alimento,
mas a sua quantidade, freqüência e os intervalos entre as refeições.
O animal recebe um único tipo de alimento, colocado no alimentador
programável, e o restante da alimentação é
fornecido, através de sondas, diretamente no estômago. A lesão
de cárie formada deve-se única e exclusivamente ao alimento
teste interagindo com os microrganismos cariogênicos inoculados no
animal. O nível de cárie obtido com cada alimento é
comparado então com os resultados do mesmo experimento, utilizando-se
a sacarose como controle positivo(valor 1,0).
Foi possível observar então que exis-tem alimentos
mais cariogênicos que a sacarose, como biscoitos recheados com creme
de chocolate (valor 1,41), ou uvas passas (1,40), e alimentos de baixa
cariogenicidade como pipocas (0,38), salgadinhos de milho (0,30) ou leite
com chocolate sem açúcar (0,38). Alguns alimentos podem surpreender,
como batatas fritas chips (industrializadas) (0,84), ou maçãs
(0,77). Deve-se ter principal atenção com alimentos que são
consumidos como "petiscos".
Estudos empregando o mesmo modelo também demonstraram
que um grande número de refeições diárias (17)
de um alimento (cookies) pode resultar em diferentes scores de cárie,
dependendo da sua freqüência. Assim, se essas refeições
forem fornecidas a cada 10 minutos, a sua cariogenicidade é menor
do que se elas forem fornecidas a cada 60 minutos, ocupando um período
maior do dia. O padrão de alimentação também
influencia a microbiota oral, havendo maior nível de S. mutans
nos animais que receberam alimento durante a maior parte do dia. Estes
estudos levaram à conclusão de que o importante é
a "não freqüência de alimentação", ou seja
o período do dia que não se tem alimento na boca. Por isso,
devemos enfatizar que a manipulação da forma de uso do alimento
determina sua cariogenicidade.
Este modelo de estudo também propiciou a avaliação
da influência de subs-tâncias adoçantes na cariogenicidade.
Para isso, foram utilizados ratos dessalivados, propiciando um maior ataque
cariogênico, alimentados com uma dieta rica em sacarose, inoculados
com S. mutans. Foram avaliadas diversas substâncias adoçantes
colocadas em água: sucralose(3cloro-galacto-sacarose), as-partame,
sacarina e sacarose, esta úl-tima como controle positivo, e somente
água como controle negativo. Não houveram diferenças
significativas nos níveis de cárie entre os grupos da saca-rina
e sucralose, quando comparados ao controle negativo, e o aspartame mostrou-se
levemente melhor. No entanto, o grupo que recebeu açúcar
também na água teve mais cárie que os demais, demonstrando
a cariogenicidade do açúcar também na forma de líquidos.
Estudos semelhantes utilizando poliálcoois como xilitol e sorbitol
testaram a capacidade de remineralização de lesões
por estes agentes e não foram encontradas propriedades diferentes
do xilitol, se comparado às outras substâncias, sendo este
considerado apenas uma substância não cariogênica.
Um outro estudo avaliou a incorporação de flúor
ao açúcar e às substâncias adoçantes.
Os adoçantes não interferiram na ação do flúor
e a adição deste agente à sacarose tornou-a menos
cariogênica, sendo de grande interesse a utilização
desta combinação.
Para se obter respostas sobre a cariogenicidade do leite, foram
realizados estudos em ratos, também utilizando-se o alimentador
programável. Os animais que receberam leite como único alimento
na boca não desenvolveram cárie. Os estudos que alegam carioge-nicidade
do leite, devido à cárie de mamadeira, fornecem pouca ou
nenhuma informação sobre o que era colocado na mamadeira.
Além disso, as crianças normalmente comem outros alimentos,
que não são citados, e este quadro é geralmente associado
à má higiene oral e ao uso de chupeta e/ou mamadeira, cujo
bico em contato com o palato impede o acesso da saliva à superfície
dos dentes. Portanto, leite é não cariogênico. Por
outro lado, leite não auxilia na prevenção de cáries.
Se for fornecida dieta cariogênica, com ou sem leite, o resultado
é o mesmo. Mas existem diferenças se o desafio cariogênico
for dado com leite (leite adoçado com açúcar) ou depois
do leite. Embora o número de lesões tenha sido o mesmo dos
animais controle, o grupo que recebeu o leite sozinho e depois a dieta
cariogênica apresentou lesões menos severas. O leite tem propriedades
cariostáticas modestas, em circustâncias bem definidas, portanto
não se pode recomendar o uso de leite adoçado com açúcar.
Estudos prévios indicavam que, se uma pessoa come um alimento
doce e imediatamente após queijo ou amendoim, o pH da placa não
chega a cair. Visando avaliar o papel de amendoim e queijos na cariogenicidade
de alimentos, foram realizados dois estudos com o mesmo modelo, onde
os animais recebiam dieta cariogênica a intervalos regulares, e periodicamente
recebiam amendoim ou queijo. O grupo do amendoim teve níveis de
cárie iguais ao grupo controle, que recebeu somente a dieta cariogênica.
Mas o grupo do queijo teve menos lesões, demonstrando propriedades
cariostáticas. O queijo estimula o fluxo salivar de forma sistêmica
pela presença de tiramina. Mas tem a sua ação de inibição
de cáries mesmo em animais dessalivados, portanto tem também
um efeito local. O queijo tem um efeito "protetor" em outras refei-ções
além daquela que é adminstrado, o que não pode ser
atribuído à presença de cálcio e fosfato. O
queijo apresenta ácidos graxos, como ácido otanóico
e decanóico, que são potentes agentes antimicrobianos. Também
possui aminas (queijos envelhecidos) que metabolizadas levam à formação
de amônia, elevando o pH, e caseína que inibe a aderência
de microrganismos ao dente, competindo com proteínas salivares e
com GTF pelos sítios de ligação à hidroxiapatita.
Sendo assim queijos Suíço e Cheddar, empregados na análise,
têm ação anticárie.
Utilizando-se estes modelos, poderemos entender muito mais as
interações que ocorrem entre os diferentes tipos de alimentos
na placa, levando a um maior ou menor ataque cariogênico.