Carlos Estrela & Jesus Djalma Pécora
 

INTRODUÇÃO

Os avanços técnicos e científicos observados recentemente marcaram transformações conceituais expressivas nas ciências biológicas. A conquista de novos métodos de pesquisa associada à evolução da biologia celular e molecular, bioquímica, microbiologia e genética, caracteriza várias justificativas dos avanços atuais da Endodontia, decorrente, em especial de sua íntima relação com estas ciências básicas.

O processo de sanificação em endodontia tem sido pesquisado e discutido sobre vários enfoques. É aceito que um dos fatores condicionantes, considerado como pré-requisito para a instalação da patologia pulpar e periapical é a presença de microrganismos. Desta forma, a determinação e o conhecimento dos microrganismos predominantes em canais radiculares infectados representa fator decisivo na escolha de um processo de controle microbiano.

A preocupação com a descoberta de soluções eficazes e práticas para o controle de infecções orgânicas dos canais radiculares e dos tecidos periapicais não é recente. VAN LEEWENHOCK em 1697 observou, com lentes de aumento, pequenas formas de vida presentes na saliva e em materiais provenientes de processos cariosos. LOUIS PASTER em 1861, apesar de ser considerado o descobridor da bactéria, não analisou o papel destes microrganismos em infecções clínicas, permitindo este estudo a VEILLON & ZUBER em 1800. MILLER no período de 1880 a 1894, por meio de observações microscópicas, demonstrou a presença de distintos tipos de microrganismos na polpa dentária necrótica. Os estudos iniciais de bactérias anaeróbias têm sido relatados pertencerem aos anos de 1900. VICENT em 1905 reporta a  frequente presença de Fusiformes e Espiroquetas em periostite dentária, enquanto que BAUGARTNER em 1908 observou estes mesmos tipos morfológicos em exsudato decomposto removido de polpa necrosada ( MILLER, 1890, 1894; NOLTE, 1982; SLOTS & TAUBMAN, 1992; NISENGARD & NEWMAN, 1994).

As numerosas espécies de microrganismos constituintes da flora de canais radiculares infectados somente puderam ser isoladas e estudadas após o desenvolvimento de técnicas modernas de coleta e de transporte para cultura e isolamento dos diferentes tipos de microrganismos ( BROWN & RUDOLPH, 1957; McDONALD et al., 1957; SOCRANSKY et al., 1959; WINKLER, 1959; MOLLER, 1966; ARANKI et al., 1969; GORDON, 1971; FULGHUM et al., 1973; SUNDQVIST, 1976; ZIELKE et al., 1976; DAHLÉN & HOFSTAD, 1977; BERGENHOLTZ, 1977; SUNDQVIST et al., 1979; DAHLÉN & BERGENHOLTZ, 1980; HAAPASALO, 1986; SUNDQVIST, 1992 ). Posteriormente à evolução das técnicas de identificação dos microrganismos, constatou-se que as infecções presentes nos canais radiculares eram mistas, com predominância de bactérias anaeróbias Gram-negativas.

O metabolismo energético das bactérias encontradas nestas infecções mistas do canal radicular pode ser realizado graças à respiração ou à fermentação. O efeito do oxigênio sobre estas bactérias permite classificá-las em aeróbias, microaerófilas e anaeróbias.

As bactérias anaeróbias encontradas nestas infecções polimicrobianas exercem função primordial na produção de enzimas e endotoxinas, mostrando-se responsáveis por diferentes reações que podem potencializar a infecção:

Esta íntima correlação entre bactérias presentes em canais radiculares infectados e sintomas clínicos característicos de periodontites apicais agudas atualmente está melhor esclarecida ( DAHLÉN & HOFSTAD, 1977; SUNDQVIST, 1976; SUNDQVIST et al. 1979; DAHLÉN & BERGENHOLTZ, 1980; SUNDQVIST & JOHANSSON, 1980; GRIFFE et al., 1980; MOLLER et al., 1981; YOSHIDA , 1987; BROOK et al., 1991; HORIBA et al., 1991; BAUMGARTNER, 1992).

A potencialização das infecções do canal radicular e da região periapical ocorre comumente em virtude do predomínio de bactérias anaeróbias ( SUNDQVIST et al., 1979; DAHLÉN & BERGENHOLTZ, 1980; ANDO & HOSHINO, 1990 ).

As bactérias aeróbias facultativas, capazes de crescer tanto na presença quanto na ausência de oxigênio, também têm sido associadas às infecções periapicais.

TRONSTAD (1992) relata que em canais repetidamente abertos e fechados devido à presença de dor, de pacientes submetidos a tratamentos inadequados, incluindo antibioticoterapia incorreta, foram encontradas Enterobacterias sp., Escherichia coli, Proteus e Klebsiella. Outras bactérias facultativas são evidenciadas nas infecções endodônticas persistentes, como a Pseudomonas aeruginosa e o Streptococcus faecalis ( MIRANDA, 1969; STEVENS & GROSSMAN, 1983; HAAPASALO & ORSTAVIK, 1987; BARNETT et al., 1988; RANTA et al., 1988; SAFAVI et al., 1990 ).

A eliminação dos microrganismos de canais radiculares infectados com periodontites apicais tem sido uma constante preocupação, demonstrada por pesquisas que avaliaram a eficácia da instrumentação mecânica, a influência da irrigação e medicação intracanal e sistêmica, na busca de alternativas de tratamento antimicrobiano para esta patologia (BYSTROM & SUNDQVIST, 1981; TRONSTAD et al., 1990; HOLLAND et al., 1992; ASSED, 1993; ESTRELA et al., 1995; SYDNEY & ESTRELA, 1996 ).

O controle antimicrobiano do canal radicular é delegado à sanificação proporcionada pela fase do preparo químico-mecânico.

Embora expressiva redução de microrganismos tenha sido observada após a conclusão da limpeza e da modelagem, alguns trabalhos demonstraram a necessidade da medicação intracanal entre sessões, com o objetivo de potencializar o processo de sanificação do sistema de túbulos dentinários (BYSTROM & SUNDQVIST, 1981; BYSTROM et al., 1987; ASSED, 1993; SYDNEY & ESTRELA, 1996 ). Outros trabalhos relataram que o emprego da medicação intracanal favorece o processo de reparação tecidual após o tratamento de dentes despulpados (HOLLAND et al., 1979, 1983).

Baseado na evidência do papel dos microrganismos no desenvolvimento e manutenção de infecções no canal radicular e na região periapical, parece oportuno reportar que a presença de microrganismos durante o tratamento endodôntico pode não conduzir ao fracasso, mas certamente, sua ausência favorece o sucesso.

A polêmica estabelecida em épocas passadas, na fase dita medicamentosa da Endodontia, muito provavelmente, encontra-se justificada devido às indefinições nos conceitos de modelagem e sanificação, que posteriormente à melhoria e desenvolvimento de novos materiais e designs para a confecção de instrumentos endodônticos, associados ao emprego de substâncias químicas dotadas de excelentes propriedades antimicrobianas, possibilitaram redução no destaque que vinha recebendo. Assim que foram vencidos obstáculos como estes, definiram-se condutas aplicáveis e funcionais, resguardando os princípios biológicos da Endodontia.

A identificação da microbiota presente nos canais radiculares infectados é fator decisivo na seleção da medicação intracanal. O raciocínio atual direciona-se ao emprego de medicação intracanal dotada de potencialidade de ação eficaz frente aos diferentes tipos respiratórios de microrganismos ( aeróbios, microaerófilos e anaeróbios ).

O foco de atenção para a eliminação microbiana está voltado às condições determinantes ao crescimento e multiplicação, ou seja, que apresente influência na atividade enzimática das bactérias, tais como:
 

Por conseguinte, estabelece um dos quesitos na escolha da medicação intracanal, visto que o outro quesito é derivado de sua inocuidade e favorecimento à reparação tecidual.

O hidróxido de cálcio é a medicação intracanal mais empregada atualmente, que mediante a literatura, resistiu às provas da pesquisa e do tempo.

A dissociação iônica do hidróxido de cálcio em íons cálcio e íons hidroxila e o efeito destes íons sobre os tecidos e os microrganismos possibilitaram tal consagração.

ESTRELA et al. (1994) acreditam que seu representativo destaque entre os fármacos endodônticos deve-se graças a duas expressivas propriedades enzimáticas:

ESTRELA & PESCE (1996) mediante análise química de pastas de hidróxido de cálcio, frente à liberação de íons cálcio, de íons hidroxila, na presença de tecido conjuntivo de cão, reportam que o veículo acrescido ao hidróxido de cálcio pró-análise para a confecção da pasta, influencia na velocidade de dissociação iônica, nas propriedades fisíco-químicas e, consequentemente, na ação antimicrobiana e mineralizadora. A velocidade de dissociação iônica, também é influenciada pela diferença de viscosidade dos veículos empregados, sua hidrossolubilidade ou não, e pela proporção pó-líquido das pastas.

 Pastas de hidróxido de cálcio tem sido preparada com vários veículos, a saber:
 

Algumas avaliações registram comparações entre os veículos empregados nas pastas de hidróxido de cálcio no que concerne à inibição bacteriana, compatibilidade biológica e medidas de pH  ( LAWS, 1962), análise histológica  (HOLLAND et al., 1983, 1993), histomorfológica (CÉSAR, 1980; HOLLAND et al., 1983), histopatológica (PROVENCIO, 1982; HOLLAND et al., 1993), velocidade de dissociação iônica e características ácido-base (ESTRELA & PESCE, 1996), difusão dentinária iônica (ESTRELA et al., 1995); efeito antimicrobiano (ANTHONY  et al., 1982; DIFIORI et al., 1983; HAAPASALO & ORSTAVIK, 1987; ESTRELA et al., 1995, 1997; SIQUEIRA Jr et al., 1996, 1997), efeito do pH sobre o hidróxido de cálcio ( STAMOS  et al., 1985), formação de carbonato de cálcio (ESTRELA et al., 1997).

A multiplicidade de veículos empregados nas pastas de hidróxido de cálcio demonstra a ausência de consenso entre a substância que deve ser eleita para associar ao hidróxido de cálcio pró-análise, com vistas a melhorar algumas de suas propriedades. No entanto, ESTRELA et al. (1997) ao avaliar o efeito antimicrobiano direto do hidróxido de cálcio relaciona a ação antimicrobiana com a liberação de íons hidroxila, a qual requer tempo ideal de ação para a efetiva destruição dos microrganismos, quer por contato direto na luz do canal radicular, ou indireto nos túbulos dentinários. O tempo necessário para que a pasta de hidróxido de cálcio isoladamente ou associada à ação dos irrigantes endodônticos atue sobre microrganismos considerados resistentes a agentes antimicrobianos, tem sido questionado e ainda não está bem definido.

   A dinâmica existente entre microrganismo, virulência e resposta orgânica incentivou o  desenvolvimento de pesquisas que proporcionam explicações e definições mais compreensíveis e convincentes da íntima relação entre microbiologia e patologia.

A presença e distribuição de microrganismos em canais radiculares infectados e sua influência como expressivo precursor das reações inflamatórias da polpa dental e dos tecidos periapicais estabeleram uma importante associação de causa e efeito, definindo melhor alguns parâmetros de respostas a diferentes injuriantes.

SHOVELTON (1964) estudou a presença e distribuição de microrganismos em dentes desvitalizados de 97 pacientes, provenientes de processos cariosos ou traumáticos. Os resultados mostraram maior percentual de microrganismos na região cervical, quando comparados com os terços médio e apical da raiz. Os dentes portadores de processos crônicos evidenciaram uma maior proporção de microrganismos que aqueles com processos agudos.

KAKEHASHI et al. (1965) observaram o efeito de exposições cirúrgicas de polpas dentais de ratos livres de germes (estéreis) e ratos com microbiota oral indígena. Posterior a exposições mecânicas da polpa dental de molares e sua exposição à cavidade oral, no grupo em que estava presente a microbiota nativa houve presença de destruição pulpar e formação de lesão periapical. No grupo de animais livres de germes não se notou o desenvolvimento de lesão periapical, mas sim, tentativa de reparação pulpar com formação de pontes de osteodentina, demostrando o potencial de reparação pulpar na ausência de infecção.

Embora o fator etiológico mais frequente de injúria pulpar seja a presença de microrganismos estabelecendo a infecção, uma polpa injuriada por traumatismo (assepticamente) torna-se mais sensível às bactérias infectantes que uma polpa dental saudável.

Para um melhor estudo e compreensão da efetividade e mecanismo de ação das substâncias antimicrobianas torna-se imprescindível conhecer detalhes especiais dos microrganismos. O estudo dos microrganismos engloba o conhecimento de algumas características principais, como: culturais (nutrientes exigidos para o crescimento e as condições físicas que favorecem o desenvolvimento); morfológicas (dimensões das células, seus arranjos, as diferenciações e a identificação de suas estruturas); metabólicas (mecanismos utilizados pelos microrganismos para desenvolver os processos químicos vitais); composição química (identificação dos principais e típicos constituintes químicos das células); antigênicas (componentes químicos especiais das células que fornecem evidências de semelhança entre as espécies) e genéticas ( análise da composição dos ácidos nucleicos com a determinação das relações entre o DNA isolado de diferentes microrganismos).

A partir de uma análise morfológica através de estudo microscópico, componentes pertencentes à citologia bacteriana são representativos para o entedimento do mecanismo de ação de fármacos endodônticos com efeitos antimicrobianos, como o conhecimento da parede celular e membrana citoplasmática.

WebMasters: Jesus Djalma Pécora, Danilo M. Z. Guerisoli e Carlos Estrela.
Copyright 04 de novembro de 1997.
Esta página foi elaborada com apoio do Programa Incentivo à Produção de Material Didático do SIAE - Pró-Reitorias de Graduação e Pós-Graduação da USP.
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